Moradia
Um sonho mais perto da realidade
Famílias caingangues instaladas há mais de um ano na Cascata, no interior de Pelotas, veem o projeto de construção das casas de madeira sair do papel
Paulo Rossi -
As primeiras toras de madeira estão fincadas na terra e passam a desenhar outro futuro. Em um período máximo de oito meses, as 16 famílias de caingangues, instaladas na Cascata - 5º distrito de Pelotas - desde junho de 2016, poderão abandonar as barracas improvisadas. A fase é de mutirão, liderado pelo curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Uma iniciativa que ganha a adesão de estudantes também da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e voluntários do campo e da cidade. É uma causa que tem unido a academia e o conhecimento popular.
O cacique Pedro Salvador, 55, reúne-se com professores da UCPel e não esconde: tem pressa em ver as casas erguidas. Apesar de o inverno ter apresentado poucos dias de frio rigoroso, foi o suficiente para provocar problemas respiratórios em parte da criançada. Um deles precisou, inclusive, de hospitalização. Agora, com as temperaturas em alta, o líder indígena destaca o desconforto que já começa a ocorrer debaixo das lonas pretas, transformadas em estufas nos dias mais quentes.
“Não tenho como agradecer o que os professores têm feito. Não queremos mais ver o nosso povo sofrendo aqui”, resume. E direciona o foco das preocupações aos atendimentos na área de saúde.
Uma nova morada começa a sair do papel
São duas frentes de trabalho. Uma organizada junto à comunidade indígena, na Colônia Santa Eulália, onde a primeira casa começa a sair do papel e torna real o sonho de que os ventos já não levem barracas pelos ares, como ocorreu neste inverno. A outra está montada em um pavilhão do Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, onde professores universitários, alunos, ex-alunos e voluntários se revezam entre várias atividades. Do preparo de materiais doados, como portas e janelas, à confecção de mobiliário. Com um tanto de criatividade, pedaços de madeiras que seriam descartados, transformam-se em móveis: mesas, bancos e camas. E o mais importante: para cada decisão, há o diálogo com os caingangues para definir o que é ou não prioridade.
Saiba mais
- Área construída: a regra é fazer muito com pouco. As 16 casas - construídas com verba disponibilizada via Ministério Público Federal (MPF) - terão 26 metros quadrados de área, além de um mezanino de seis metros quadrados, que permitirá aproveitamento de espaço, sem interferir na quantidade de telhas. Um alpendre de outros seis metros também está previsto e atenderá um dos pleitos dos índios: contar com ambiente para uma boa roda de chimarrão.
Ao todo, aproximadamente R$ 7 mil serão investidos por moradia, já contabilizados os custos com saneamento. Portas, janelas, sanitários, balcões de pia para cozinha e pedaços de madeira integram a lista de doações. A técnica construtiva facilitará a ampliação das residências, caso novos recursos sejam liberados no futuro.
- Banheiros: Até o momento, o projeto prevê a construção de dois banheiros coletivos. A chegada de kits de materiais, entregues pela Fundação Nacional do Índio (Funai), poderá permitir a construção de banheiros individuais. Um debate com a comunidade irá colocar em avaliação o melhor uso para as madeiras. O tema ainda está em aberto.
Em cada ponta um aprendizado
- Um novo olhar sobre o papel do arquiteto: O programa de extensão Sustentabilidade na Habitação Social do curso de Arquitetura e Urbanismo da UCPel, que lidera a iniciativa de construção das casas aos índios, reforça a discussão levantada no 6º semestre, quando os estudantes passam pela disciplina de Habitação Social.
“É importante lembrar que o arquiteto não é um profissional de luxo. Existem outros campos de atuação”, enfatiza a professora Joseane Almeida, decidida a derrubar a ideia de que o arquiteto só estará envolvido em projetos caros, com enfoque em decoração e paisagismo.
- Mais perto da realidade: A jovem Helena Insaurriaga Patzold, 19, ainda nem chegou ao 6º semestre, mas já se juntou ao trabalho. Ingressou ao projeto de extensão como voluntária e hoje, apesar de estar no 4º semestre, ocupa uma das bolsas. Ao ser indagada sobre a oportunidade de atuar em um universo que foge ao projeto ideal, não raro utópico, a acadêmica procura palavras para expressar o peso do aprendizado: “Meu Deus, nem sei. Tá sendo muito importante”, resume, ao debater novas adaptações ao projeto até então esboçado.
- Da teoria à prática, a troca de conhecimentos: O aprendizado é geral. Dos estudos acadêmicos ao conhecimento popular. Quem garante são o marceneiro Décio Azambuja Mello, 43, que ajuda a dar vida aos projetos e, em tom descontraído ensina a docentes e estudantes o uso correto de ferramentas, e a professora da UCPel, Fernanda Tomiello.
“Isso é o mais mágico desse projeto. São muitas pessoas a fim de contribuir. Os alunos estão tendo a chance de colocar, na prática, o ensinamento acadêmico, que às vezes é teórico demais”, destaca Fernanda. Outros quatro professores integram o grupo: Joseane Almeida, Noé Vega de Mello, Ricardo Mendez e Stifany Knop.
- União de forças: Estudantes e ex-estudantes da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) também engrossam a equipe de parceiros. Participam integrantes do Escritório Modelo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (Faurb) e membros do grupo de Agroecologia da Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel (Faem).
A arquiteta recém-formada Beatriz Gioielli fez questão de se juntar à iniciativa. Deixou de lado a tela do computador e os conhecimentos exercitados na empresa de tecnologia para compor a confecção de móveis aos caingangues. “É sempre muito bom sair um pouco do computador e vir pro braçal, quando se tem um propósito legal”.
Outras demandas para uma vida melhor...
- Médicos e remédios: O cacique Pedro Salvador ultrapassa as barreiras da língua, que o faz procurar palavras, e se queixa das faltas de acesso a remédios e de médico na Unidade Básica de Saúde (UBS) da Cascata. A secretária de Saúde, Ana Costa, confirma as alterações no atendimento. A médica está de licença e um profissional, substituto, passou a deslocar-se à Cascata no turno da manhã. À tarde, as famílias podem contar com a estrutura da UBS da Colônia Maciel - ressalta.
Quanto ao acesso a medicamentos, a secretária sustenta que os indígenas não receberão o kit de medicação, como reivindicado para terem à disposição na aldeia. “Isto não será possível. Não temos respaldo jurídico nem de segurança para tomar essa medida. Seria indução a automedicação”, argumenta.
- Abastecimento de água: A comunidade caingangue ainda depende do caminhão-pipa. A Secretaria de Desenvolvimento Rural já perfurou novo poço para uso das famílias, mas a rede que o interligará às caixas d´água ainda não foi construída. A fase é de negociação com o Sanep - explica o secretário Jair Seidel. Quando as 16 residências estiverem prontas, uma nova obra, para estender a rede das caixas até as casas, também será necessária.
- Ruas e aterro: Jair Seidel assegurou que além das duas ruas abertas, para permitir o início da construção das moradias, o governo se compromete em disponibilizar aterro para preparar e nivelar o terreno para receber os chalés. “Isto é tranquilo. Vamos aportar o material necessário”.
Ajude também
Material e mão de obra: Os interessados em doar material ou se engajar às obras, mesmo com tarefas simples, como lixar e pintar portas e janelas, podem fazer contato com a professora da UCPel, a arquiteta Joseane Almeida.
Bicicletas: Uma campanha para doação de bicicletas aos índios também começa a ser desencadeada, para facilitar o deslocamento das famílias, principalmente, entre um ponto e outro na própria colônia.
Relembre
As famílias - que integravam a aldeia Condá, em Chapecó (Santa Catarina) - chegaram a Pelotas em novembro de 2015. Depois de permanecerem mais de meio ano instalados em condições precárias, às margens da rodovia, próximo à Estação do Terminal Rodoviário de Pelotas (Eterpel), os caingangues foram conduzidos ao 5º distrito, em junho de 2016. Com apoio da comunidade em geral e a interlocução do Ministério Público Federal (MP) e de professores dos cursos de Direito e de Arquitetura da UCPel, os indígenas começaram a sair da invisibilidade.
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